O Arte na Fonte, projeto idealizado pelo artista plástico Rafael Meggetto (foto), leva uma exposição com obras de oito grandes artistas periféricos do Rio de Janeiro ao FUN ARTE – Arte em Circuito com Skate e Cultura, à Escola Nacional de Circo, de 26 à 29 de maio (veja a programação completa e ingressos gratuitos disponíveis no site https://arteemcircuito.com.br/rio-de-janeiro/). Nesta entrevista exclusiva, Rafael revela curiosidades sobre sua trajetória e nos conta como surgiu a ideia do projeto, que envolve uma plataforma de vendas de obras de diversos artistas, aproximando-os do público e destinando parte da renda a doações para projetos sociais.

Quando foi que você começou nas artes plásticas?

Não venho de uma família de artistas, mas a arte sempre esteve em minha vida de forma intuitiva. Desde pequeno, o desenho era um grande companheiro, adorava desenhar. O tempo inteiro, meus cadernos eram todos desenhados, criava meus mundos, meus sonhos, minha fantasia. Entender que a arte poderia ser uma profissão tomou bastante tempo, mesmo gostando de desenhar e tendo certa habilidade, não tive um incentivo inicial dentro de casa e foi na rua que comecei a conhecer um pouco mais sobre o mundo da arte.

O grafiti foi uma das minhas grandes escolas de vida e de arte. Comecei a pintar na rua no começo dos anos 2000, o que mudou toda minha vida, minha visão do mundo e o que eu conhecia como arte. Comecei a pesquisar mais, estudar mais. Fazia faculdade de administração na época, mudei para Desenho Industrial (Design) e aos poucos a arte foi me conquistando ainda mais. Trabalhei como designer, tive escritório de design, mas, ainda assim, ansiava pela liberdade artística. O design era um caminho artístico, mas ainda me deixava muito amarrado ao mercado. Em 2016, decidi seguir uma carreira artística. Estava convicto de que era meu caminho, e foi nesse mesmo ano que, com o desafio de ser um artista independente, criei uma forma de venda pela internet, que futuramente se tornaria a plataforma Arte na Fonte.

Eu entendo e comungo da visão de que o artista não escolhe a arte, mas é a arte que escolhe o artista. Por mais que eu tentasse fazer outras coisas, a arte sempre estava ali me puxando, me carregando e traçando o meu caminho de vida.

O que inspira suas criações?

O sonho sempre foi meu companheiro inspirador, por isso meu trabalho caminhou muito pelo surrealismo. Eu geralmente vejo as minhas obras antes de elas ganharem forma, se materializarem. Elas ficam na garganta até isso ocorrer, têm uma mensagem, algo a dizer. Minha arte é meu modo de escrever, de falar.

Hoje entendo que o que me move também é a indignação, o incômodo. Por vezes me sinto incomodado, daí a imagem vem para falar sobre isso. Por vezes quero incomodar, como forma de mover o outro. Acho também que as inspirações mudam com o passar do tempo. Hoje, me sinto muito atraído pelo reuso de materiais, penso muito nesse assunto, na reciclagem. Se parar para pensar, é novamente o incômodo atuando. Me incomoda muito a forma desrespeitosa como vivemos.

Além da pintura, em certas obras, como em Nosso Ninho (à direita), você mistura diferentes materiais e até tecnologia. Tudo pode virar arte dependendo do olhar e da criatividade do artista?

Até hoje a pesquisa sempre foi experimental e nunca me prendi tanto numa única técnica. Gosto de ter liberdade. A pesquisa de materiais diferentes me interessa muito. A pintura acaba se tornando um ato escultórico de acordo com os materiais que vou achando. Sou um coletor de materiais convicto. Gosto de reutilizar materiais descartados. Vejo beleza na história de um material.

A série de esculturas de Nosso Ninho começou quando achei um ninho de passarinho caído na frente da minha porta. Guardei, e seis meses depois ele se transformou em escultura. Como você disse, tudo pode virar arte, acredito nisso. Tudo é arte, desde que tratemos como. Faz parte do olhar e do toque sensível do artista essa transmutação de valores, é a verdadeira alquimia.

Você acredita que, hoje, a arte de rua, como o grafiti, antes mais reprimida, está numa fase de maior valorização, com painéis a céu aberto, eventos? Como você vê a importância da arte para os jovens, para a formação, para a sociedade?

Se não fossem os pichadores, não existiria grafiti. Se não fossem os grafiteiros, não existiriam grandes eventos, grandes painéis. A valorização de hoje é fruto de um trabalho ininterrupto que acontece há quase 60 anos, antes marginalizado e hoje exaltado. A arte de rua foi, antes da internet e das redes sociais, a principal ferramenta de socialização da arte.

Através da rua, a arte saiu das galerias excludentes e chegou às periferias. Hoje se fala mais de arte por causa do grafiti, da internet, das redes sociais. O acesso se tornou mais fácil. Isso é uma vitória, pois a arte faz parte da memória e da cultura de um povo, manifesta sentimentos, promove conscientização.

A arte não é importante para os jovens, é fundamental. E que bom que se fala mais dela hoje em locais aonde não chegava. Não tenho dúvida de que tanto o grafiti como a pichação foram fundamentais para esse avanço, tudo está interligado.

Como surgiu a ideia do projeto Arte na Fonte? Qual a proposta?

A ideia do Arte na Fonte surgiu em um momento de transição na minha vida. Eu estava deixando minha carreira de designer para seguir a de artista. Contudo, não sabia muito bem como viver de arte. Já tinha um trabalho ligado ao grafiti, fazia trabalhos comerciais, pintava na rua, pintava algumas telas, mas tinha pouco conhecimento do mercado de arte. Tinha muitos trabalhos em casa, parados, queria que eles chegassem à casa das pessoas, dos amigos, dos familiares, de quem gostasse de minha arte. E também queria dar espaço para o novo, era uma nova fase na minha vida, os quadros representavam de alguma forma meu passado.

O ano era 2016 e eu tive a ideia de fazer uma exposição/festa no meu aniversário, que é em novembro. Na tentativa de fazer minha produção artística ganhar um rumo fácil e acessível, nesse evento todos os meus quadros seriam vendidos a partir de R$0 (zero real). Bastava dar seu lance na hora. O lance maior, até o final da festa, levaria. Coloquei o valor inicial em R$0 pois sabia que alguns amigos não tinham condições de pagar alto, e eu queria que o preço fosse tão atraente, que seria impossível a pessoa sair de lá sem uma obra minha.

Minha maior preocupação naquele momento era fazer minha produção ganhar um rumo e conseguir recursos financeiros. Eu morava em um lugar que já não comportava mais tantos quadros, precisava de espaço, e me sentiria feliz de estar na casa das pessoas. Essa é uma das minhas motivações como artista, estar na memória das pessoas.

O movimento de doação veio em um segundo momento, mas é um traço da forma como fui criado. Meus pais sempre ajudaram, como podiam, quem precisava mais que eles. Isso me motivou a doar também. Acredito muito nessa troca, muito no retorno do que se doa, nada é em vão. Assim, decidi doar uma parte do que seria arrecadado. Escolhi ajudar o projeto de uma amiga, a Karina (Duarte), chamado Arte Salva, que levava educação e cultura para as crianças moradoras do Lixão de Gramacho, no Rio de Janeiro. Me emocionava muito o movimento amoroso dela em tentar ajudar aquelas crianças. Não sabia muito bem quanto doar no começo, então decidi repassar a metade de tudo que arrecadasse com a venda. Me parecia um bom número, é como repartir o pão, é justo, meio a meio.

Mas o mais interessante ainda estava por vir. Uma semana antes do meu aniversário, com tudo já organizado para o evento/festa/exposição, que aconteceria na casa que hoje abriga a Úmida (da qual é sócio – www.umidagaleria.com), fui avisado que não poderia fazer o evento lá, pois um casamento acontecera ali uma semana antes, tomando proporções maiores que o esperado e incomodando os vizinhos. Assim, para não gerar mais incômodo, o melhor seria não fazer o evento. Essa notícia foi uma bomba nos meus planos festivos e expositivos, contudo foi a melhor notícia para o futuro, nada é por acaso.

Sem ter local para fazer meu evento, me vi de mãos atadas. Onde faria minha exposição? Onde venderia minhas obras? Vendo minha conta no Instagram, meus posts – sempre postava sobre arte, sempre colocava foto de meus trabalhos na rua, de minhas pinturas – percebia que muitas pessoas gostavam, comentavam, curtiam. Daí pensei: bom, se meus amigos me seguem e comentam minhas fotos… Vamos dizer que tenho uns 50 amigos que, com certeza, curtem o que eu posto. Desses 50, 10 comentam… Se 10 derem um lance em alguma obra minha, eu consigo vender! Pronto, foi na falta de espaço físico para fazer meu evento que eu descobri a potência do espaço virtual.

Assim, em 19 de novembro de 2016, meu aniversário, eu comecei a fazer o movimento que mais tarde se tornaria o Arte na Fonte. Desde a primeira obra deu muito certo. A primeira arte que vendi foi um desenho meu, do meu caderno, pelo qual eu tinha muito afeto, gostava muito e achei que fazia sentido dar para o universo.

O universo me retribuiu, consegui um valor duas vezes maior do que eu queria. Vendi para um comprador francês, que conheceu meu trabalho através do projeto social Arte Salva, que me ajudou a divulgar meu leilão. Daí percebi também a potência da rede amorosa que se constrói ao doarmos parte da venda. Tive que mandar o trabalho vendido para Nice, na França. Depois dessa venda, fiz mais sete leilões de minhas obras, todas começando de R$0, todas doando metade paras as crianças de Gramacho. E, em janeiro, com essas sete vendas, já tinha doado sozinho para o projeto quase mesmo valor que eles arrecadaram durante todo o ano de 2016. Foi aí que eu percebi a potência desse movimento.

Durante uns três meses, consegui me manter fazendo vendas a partir de R$0 pelo meu Instagram. Era mágico ver aquilo acontecendo. Foi aí que, em março de 2017, recebi um convite do artista Marcio Regaleira para abrir a Úmida Arte, nossa produtora artística, e levei para ele a ideia de fazer uma plataforma de vendas a partir de R$0 com doações em todas as vendas, engajando vários artistas. Assim criamos a Arte na Fonte.

De lá para cá são mais de 600 obras vendidas a partir de R$0, mais de 300 artistas engajados e mais de R$300.000 em doações para projetos sociais, sendo R$230.000 somente durante a pandemia (2020 até 2022). Muito desse montante chegou até famílias extremamente necessitadas, transformou vidas e também ajudou artistas em momentos difíceis, assim como me auxiliou muito no meu difícil momento de transição. Eu só tenho a agradecer ao Arte na Fonte, ao Márcio e todos os apoiadores que fazem parte dessa incrível rede de arte e amor.

A Úmida Arte é conhecida como um espaço aberto para a arte e criação. Como ocorre essa interação de artistas? Surgem novas criações a partir de experimentação, parcerias?

A Úmida surge ao mesmo tempo em que a Arte na Fonte. Na época, meu sócio, o artista Marcio Regaleira, me chamou para cuidarmos da curadoria artística da casa Inspiração Consciente, no Jardim Botânico. E assim surgiu a Úmida Arte, que é um híbrido de escritório de arte, produtora e atelier, além de espaço expositivo. Na mesma época, estava fazendo as vendas no meu Instagram, através de leilões sem lance inicial e estava dando supercerto. Levei a ideia para ele e fundamos a plataforma Arte na Fonte. A ideia era dar acesso à arte e ter a participação de outros artistas. Começamos em nove artistas na primeira edição. Hoje, já passaram mais de 300 pela plataforma. Realmente, esse é um movimento que só nos enche de orgulho, é muito bonito ver a arte ser contemplada de forma tão humana e gentil.

Como será a participação do Arte na Fonte no FUN ARTE – Arte em Circuito com Skate e Cultura?

O Arte na Fonte vai fazer uma exposição com obras de oito grandes artistas periféricos do Rio. Nesta exposição, a venda já estará aberta para o público e o valor arrecadado será doado, parte para o artista engajado (20%), parte para a Escola Nacional de Circo (80%). Alguns artistas vão finalizar suas obras durante o evento, dando ao público a chance de ver de perto sua produção.

Qual dica ou conselho você daria para quem quer começar nas artes e não tem ideia do ponto de partida?

Primeiro, invista em sua arte, estude, pesquise, se arrisque. Estude tudo sobre o mercado também, é mais fácil ter acesso a conteúdo de qualidade e gratuito na internet sobre o mercado hoje em dia. O segundo ponto importante é cativar e valorizar seu “ciclo de afeto”. É assim que chamo aquele grupo de pessoas que apreciam sua arte neste começo, são elas que serão sua base de sustento, principalmente nesse início. Sustento financeiro, mas, principalmente, sustento emocional. Esteja na casa das pessoas que gostam do seu trabalho, se exponha, seja visto. Ser visto gera interesse.

Arte está bem longe de ser uma carreira fácil, provavelmente você vai trabalhar mais que os outros, e provavelmente não terá o retorno imediato. Mas se você ama fazer arte, será a melhor escolha da sua vida. A carreira do artista é construída com tempo, suor e sangue, muito sangue e amor ao que se faz. Não desista, persistência é a chave.

Fotos do arquivo pessoal do artista/divulgação

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